quinta-feira, 4 de dezembro de 2008


o que se ouve entre a opy e a escola - corpos e vozes da ritualidade guarani


índice

capítulo sete
epílogo




CAPÍTULO OITO
A CONCEPÇÃO DO TRÁGICO

zaratustra

Para introduzir, narra-se, a seguir, um exemplo de como o autor articula amor fati e agenciamento através dos recursos estilísticos que dispõe.
Na quarta parte do Zaratustra, em O canto da melancolia, este personagem deixa a caverna e o velho feiticeiro assume a tribuna e envolve o auditório. Em nome da ciência e sua segurança, o homem consciencioso toma-lhe a palavra e rechaça seu dogmatismo. Ao retornar à caverna, Zaratustra retoma a tribuna invertendo o medo que guia tal ciência na coragem do homem que arrebatou as virtudes dos animais.
Nesse trecho, Zaratustra quer provar a volubilidade de seu auditório. O recurso do autor é utilizar-se da mesma verve narrativa via feiticeiro ou homem de ciência. Deixei-me conduzir, junto aos demais personagens, por tais discursos, e, tal como as figuras, fui por duas vezes seguidas desmascarado.
Ao subir à tribuna, o homem de ciência distingue-se do rebanho. A impressão de estar na tribuna desfaz-se novamente quando o leitor é derrubado, agora por Zaratustra, que inverte esse discurso.
O desdobramento do locus narrativo nessas três dimensões é o recurso utilizado pelo autor para evidenciar sua distância em relação a seu auditório. Essa verve narrativa é a voz de Zaratustra operando suas artes de ventríloquo. Zaratustra mascara-se, falseia. Mas é sua mesma verve que atravessa os discursos dogmático e ascético das personas.
Com esse recurso, o autor-narrador revela o espírito gregário do leitor, enquanto demonstra o dogmatismo que atravessa os discursos que arremeda. O recurso do desdobramento enunciativo/interação enunciativa serve aqui para evidenciar a falseabilidade, o caráter de enganar próprio da arte, mais que simular os fluxos da consciência numa vontade de verdade de uma ontologia ainda positiva.
Tal recurso serve a uma única leitura, o que revela outro caráter que cumpre destacar nessa dissimulação: seu caráter de acontecimento. Zaratustra não quer seguidores, suas palavras não suscitam um ouvir desejante, ouvir manso e vulgar que possa ser conduzido. Nietzsche proclama que o que a vontade deve aprender é a ser lenta e desconfiada.
Os recursos literários ao autor servem para conduzir o leitor, numa vivência pela dissimulação própria do fenômeno eterno, ao penetrá-lo e decompor seu próprio discurso interior.

“Na arte dionisíaca e em seu simbolismo trágico, fala-nos a mesma natureza com sua voz verdadeira, sem disfarce:  ‘Sede como eu sou! Sob a incessante mudança dos fenômenos, a Mãe primordial, eternamente criadora, eternamente a forçar a existir, eternamente regalando-me com essa mudança de fenômenos’!”
(Nietzsche)

As teses da filosofia de Friedrich Nietzsche são apropriadas aqui devido ao caráter precursor de sua crítica aos pressupostos da epistemologia sustentada pelo pensamento ocidental moderno.
Em sua crítica ao dualismo ontológico natureza/cultura e seus correlatos (corpo/mente, sensível/inteligível, razão pura/razão prática, objetivo/subjetivo, fato/valor etc) denuncia sua descendência em linha direta da oposição entre natureza e sobrenatureza.
Inicia-se com a inversão do pessimismo schopenhaueriano através da apropriação dos princípios heraclitianos que constituem o trágico dionisíaco.
Esse movimento aciona os recursos com que tais teses são encaminhadas. Ao problematizar o corpo e a sensibilidade como plano de imanência do conhecimento, concebendo-o como fenômeno estético imanente, redefine a vontade de verdade que caracteriza a tradição ocidental. Vislumbra no corpo, via ritualidade ática, o plano de imanência para traçar seu programa e redefine as concepções transcendentais ou metafísicas a partir do fenômeno estético. Ao pautá-las na existência, envia à ritualidade como princípio. O princípio de Dyonysos Philosophos consiste em fundar o devir no corpo.
Esse recurso libera a unidirecional vontade de verdade, marcada pela objetividade que acentua os limites do sujeito, a uma pluraridade de perspectivas, retomada em caráter epistêmico. Essa multiplicidade baseada na imanência contrasta com a unidade de princípios transcendentes.
Encontra no pensamento da idade trágica dos Gregos o contraponto à epistema da época. Esse pensamento constitui-se dos prolongamentos das práticas rituais à primeira filosofia Grega. Essas práticas, escamoteadas na tragédia via princípio apolíneo, contrabandeiam um princípio de imanência que perverte a representação. As vivências simbólico-somáticas dos iniciados caracterizam tal princípio.
Para encaminhar esse pensamento da multiplicidade com seu devido teor epistêmico, encontra seu prolongamento na corrente do pensamento de Heráclito de Éfeso. Retoma os princípios dessa matriz filosófica, remetendo à polêmica e ao enigma que ela oferece ao estabelecimento da ratio ocidental.
A apropriação dos recursos forjados por esse pensamento constituem a linha de fuga que deverá encaminhar a concepção da figura de Outrem. Essa abertura à multiplicidade libera uma alteridade instalada no plano de imanência, o que redefine uma subjetividade que toma a consciência em caráter absoluto (doutrina do juízo).
A ritualidade define seus princípios estéticos no escrito de 1872, O Nascimento da Tragédia, enquanto as ressonâncias filosóficas são elaboradas nos fragmentos denominados A Filosofia na Idade Trágica dos Gregos, de 1873. Essas produções iniciais têm caráter programático nesse pensamento.
Ao alinhar o conhecimento, instrumento da potência, à existência, redefinindo seus valores, redimensiona os princípios epistemológicos, retirando abruptamente o esteio do pensamento da época. Rastreia os princípios metafísicos da vontade de verdade e liberta os primeiros filósofos, condenados então ao pessimismo.
Ao apropriar-se, via Heráclito, da justificação estética da existência, remonta aos princípios morais que enredariam a objetividade idealista nas malhas da representação. A apropriação da techné, dos recursos literários dessa estética, permite-lhe traçar os desdobramentos de sua proposta.


O Nascimento da Tragédia: a inversão do pessimismo

“Parto da tragédia
Vamos chegar, no entanto, à questão principal, ao que destaca e distingue o livro, à sua originalidade: ele contém três novas concepções. A primeira nós já referimos: a arte como o grande estímulo da vida, para a vida. A segunda: ele traz um novo tipo de pessimismo, o clássico. Quanto à terceira: ele coloca de um modo novo o problema da psicologia, a grega.”
(14 (26):150)

No prefácio da maturidade, já é um outro Nietzsche quem fala. Concentra-se sobre seus dois pontos centrais. A dimensão sensível que cumpre ao dionisíaco e a conseqüente proposição de que a existência do mundo só se justifica como fenômeno estético. Assim, contra a moral que sustenta o otimismo do discurso competente de sua época, o autor invoca vozes, olhares e sentidos gregos para sua transvaloração.
O seu dissonante dionisíaco, que reformula a concepção clássica do mundo grego, emerge contra o que denomina de hostilidade à vida e encaminha à esterilidade, visto que toda a vida repousa sobre a aparência, a arte, a ilusão, a óptica, a necessidade do perspectivístico e do erro.
A concepção clássica do mundo grego, marcada pela harmonia das formas, é substituída pela dissolução dinâmica nas sonoridades dissonantes. Em lugar da segurança de um universo mapeado por uma rede de conceitos, é o desolador olhar grego a desvelar a dimensão trágica de um mundo sem redenção.
Essa inversão de olhares em que, de observador da cultura grega, o autor passa a ser a possibilidade enunciativa de desdobramentos, a partir dos quais o olhar grego volta-se sobre o contexto do autor, evidencia a moral como consolo metafísico do positivismo.
A afirmação da vida como a priori é o princípio que conduz Nietzsche à apropriação da vontade schopenhaueriana. Schopenhauer concebe a vontade como conhecimento intuitivo imediato, contraposta à mediação simbólica da representação. O mundo, enquanto não representado, é vivido no corpo como vontade.
Esse segredo transcendental do mundo, que dá acesso ao âmago das coisas, através de um conhecimento imediato é, para Nietzsche, o grande erro de Schopenhauer.

“[...] Compreendi que o meu instinto aspirava ao oposto daquele de Schopenhauer: a uma justificação da vida, mesmo no que ela tem de mais assustador, de mais equívoco e de mais mentiroso: para isso dispunha de minha fórmula ‘dionisíaca’.’(trad. Brum:72)

O pessimismo dos fortes de Nietzsche aceita a existência como um fenômeno eterno, o que lhe possibilita inverter, como Heráclito a partir de Anaximandro, o pessimismo schopenhaueriano.
Ainda que tenha problematizado a moral que embasa o pensamento da época e encaminhado a imanência estética da sensibilidade, o autor mantém a distinção entre mundo real, sustentado com a noção de compaixão, e mundo aparente, Maja, o que o leva a manter o juízo de valor sobre a existência.

“Assim, a apreensão que suprime a diferença entre o eu e o não-eu não é a errônea, mas sim a que lhe é oposta. Encontramos esta última indicada pelos hindus pelo nome de ‘Maja’, quer dizer, ilusão, engano, fantasma. Aquele primeiro aspecto é o que encontramos como sendo aquilo que está no fundamento do fenômeno da compaixão e mesmo como a expressão real dele. Seria portanto a base metafísica da ética e consistiria no fato de que um indivíduo se reconhece a si próprio, a sua essência verdadeira, imediatamente no outro.” (Schopenhauer, 1995:217)

A dissolução do eu no não-eu, mera referência para a estética metafísica comprometida com o transcendental, é apropriada ao corpo da filosofia trágica como princípio do perspectivismo, do desdobramento enunciativo.
Ainda que contraposto ao otimismo oculto na essência da lógica, substrato da nossa cultura, a superabundância dionisíaca alinha-se à gaya scienza, homologia de filosofia e alegria, segundo a qual a existência não está entre os elementos passíveis de apreciação de valor. Portanto, o pessimismo filosófico faz parte das coisas cômicas.
O trágico é liberado do dionisíaco, a dor da existência tomada em seu valor estético, revertida em tônico, em força que conduz à satisfação do criar e do destruir próprio da existência, como os castelos de areia de uma criança.

“A aquiescência à vida, até em seus problemas mais afastados e mais árduos; o querer-viver sacrificando alegremente os seus tipos mais realizados para a sua própria e inesgotável fecundidade  é tudo isto o que chamei dionisíaco [...]”
(apud Brum:75)

A dissonância é característica desse mundo sem redenção. Ela define em termos musicais o devir que caracteriza a imanência como fundamento do trágico, descerra as convicções e libera as perspectivas. Suscita os estados de exceção ao conduzir a função vital das operações sobre a percepção. Como um remédio lembra remédios mortais, o sofrimento e a morte revertem-se em tonificantes para os fortes, os não ressentidos. Caracteriza o poder transfigurador da música dionisíaca como comovedora violência do som, torrente unitária da melodia em que o homem é incitado à máxima intensificação de todas as suas capacidades simbólicas: o simbolismo corporal.
A dissonância, aspecto musical central, afirma a função deformadora da música que serve a dissolução de um corpo fechado a forças figuradoras de uma arquitetura dórica de sons.
“A argila mais nobre, a mais preciosa pedra de mármore é aqui amassada e moldada e, aos golpes de cinzel do artista dionisíaco dos mundos, ressoa o chamado dos mistérios eleusinos: ‘Vós vos prosternais, milhões de seres? Pressentes tu o Criador, ó mundo?’ ” (1992:32)

Agencia-se, aqui, a própria força remodeladora a que os homens se entregam nessa vertigem do devir. É a função vital da arte que constitui o plano de imanência aqui traçado, de que resulta esta obra. É a essa operação que encaminha sua noção de fisiologia da arte ou de arte como fisiologia aplicada.

“o movimento contrário: a arte
A sensação de euforia e êxtase correspondendo de fato a um a mais de energia:
mais forte no período reprodutivo das espécies:
novos órgãos, novas habilidades, cores, formas... (...)
o estado de prazer, a que se chama de euforia, é exatamente uma alta sensação de poder...
as percepções de espaço e tempo são modificadas: distâncias tornam-se abrangíveis e como que pela primeira vez perceptíveis
a ampliação do olhar sobre maiores quantidades e distâncias
o refinamento do órgão para a percepção de muita coisa bem ínfima e fugidia
a força divinatória, a capacidade de entender ao mais leve aceno, a cada sugestão, a sensorialidade e sensualidade ‘inteligente’...
o vigor como sensação de domínio nos músculos, como flexibilidade e prazer no movimento, como dança, como leveza e agilidade
o vigor como prazer de demonstrar o vigor, como peça de resistência, aventura, destemor, sobranceria...”
(:187)

Essa operação simula a potência do falso como força motriz no jogo de forças que constitui o fenômeno eterno, e num mesmo movimento renuncia à vontade de verdade que pauta a produção de conhecimento por um outro mundo.
O esteio antropológico da ritualidade, especialmente pela convergência à corporalidade, d’O Nascimento da tragédia é o diferencial da filosofia trágica. Integra com essa concepção do conhecimento como imanente ao corpo a noção da obra como intervenção e não mais interpretação. A criação não se subtrai do jogo de forças que a constitui, não se alheia a ele. Essa apropriação refere-se a unidade matricial expressa na multiplicidade do devir: unitas multiplex.
Nas práticas místicas da corporalidade, Nietzsche vai buscar o prenúncio intuitivo do espírito trágico. O corpo como elemento aberto, como via, tem uma dinâmica distinta do pensamento conceitual, que opera com fins. Entre os Gregos, o recurso que conduz à união com o espírito dionisíaco é denominado êxtase. Em seu sentido histórico e etimológico de ex-stasis, ficar fora de.
Esse pensamento da imanência constitui-se do vínculo do princípio estético da existência com a sensualidade  aesthesis como sensação, sensibilidade. Desde o princípio, é no corpo que se fundamenta o plano de imanência que define essa filosofia. Percepção estética e sensualidade na formação da sensibilidade, na construção de um corpo de intensidades. A concentração sobre o corpo deve-se ao fato de ele ser o campo das mediações, das intensificações em que se operam as transmutações perceptivas.
Reitera-se que o patrimônio imaterial que os Guarani cultivam em seus cerimoniais e circulam via corpo, constituem parte de suas milenares estratégias de sobrevivência. Diferentemente do que sentem nossos olhos e ouvidos epistemicamente etnocêntricos, não se restringem a ornamentos culturais. Mas que não nos preocupemos, também essa maneira com que os vemos tem sido apropriada e utilizada por eles.


a concepção do trágico

O problema central d’O nascimento da tragédia está na sensibilidade como condição do pensamento. “Sim, o que é o dionisíaco?(...) Uma questão fundamental é a relação dos gregos com a dor, seu grau de sensibilidade”. (1992:10)
Esse problema articula-se a outro elemento crucial n’O Nascimento da Tragédia: sua configuração enunciativa. O primeiro desdobramento da série é o tom inaugural do título. Essa origem anuncia a apropriação que deve se dar como criação. Não é possível referir-se aos pressupostos da filosofia a não ser recriando-se esses pressupostos.
O contato que propõe com a harmonia universal envia ao princípio imanente que libera a multiplicidade, distinguindo-se da dualidade idealista. É através do simbolismo corporal, de todos os gestos bailantes dos membros em movimentos rítmicos arrebatados pela violência do som.
É nos fluxos sonoros que o autor encaminhará a dissolução dos corpos na imanência fenomênica das forças. Assim, encaminha-se ao princípio ritual da doutrina misteriosófica da tragédia , simbolizada no diasparàgmos de Zagreus, o coro.
O coro é apresentado como causa primeira do trágico. Seu caráter musical remete ao princípio dionisíaco, fundamental à tragédia. Cabe a ele interpretar unicamente a manifestação e configuração de estados dionisíacos, expressos na música.
Afim de definir precisamente a origem da tragédia o autor remete aos farrapos dispersos da tradição antiga afirmando: “Essa tradição nos diz com inteira nitidez que a tragédia surgiu do coro trágico e que originariamente ela era só coro e nada mais que coro”. (1992:52)

Refuta assim as interpretações naturalistas.
“O sátiro, enquanto coreuta dionisíaco, vive numa realidade reconhecida em termos religiosos e sob a sanção do mito e do culto. Que com ele comece a tragédia, que de sua boca fale a sabedoria dionisíaca da tragédia, é para nós um fenômeno tão desconcertante como, em geral, o é a formação da tragédia a partir do coro.” (1992:52)

Descreve o coro da tragédia como fenômeno artístico primordial e define o dramaturgo como aquele que sente o impulso de metamorfosear-se e passar a falar de dentro de outros corpos e almas. O processo da intensidade extática explicaria esse protofenômeno dramático.

“O coro satírico é, acima de tudo uma visão tida pela massa dionisíaca, assim como, por outro lado, o mundo do palco é uma visão tida por esse coro de sátiros: a força dessa visão é bastante vigorosa para deixar insensível e embotado o olhar ante a impressão de ‘realidade’, ante os círculos sucessivos de homens civilizados instalados nas fileiras de assentos.” (1992:59)

Conclui-se finalmente com a passagem ao drama, dimensão apolínea da tragédia.

“Dionísio, o efetivo herói cênico e ponto central da visão, não está segundo esse conhecimento e segundo a tradição, verdadeiramente presente, a princípio, no período mais antigo da tragédia, mas é apenas representado como estando presente: quer dizer, originalmente a tragédia é só ‘coro’ e não ‘drama’. Mais tarde se faz a tentativa de mostrar o deus como real e de apresentar em cena [darstellen], como visível aos olhos de cada um, a figura da visão junto com a moldura transfiguradora: com isso começa o drama no sentido mais estrito.” (1992:62)

Essa intimidade sensível da epistema, agenciada pela potência dionisíaca, não se limita à origem da filosofia do autor. Remonta num mesmo movimento à própria origem da filosofia grega, ao fornecer-lhe o contraponto necessário. Apresenta essa concepção encarnada nos princípios estéticos que sustentam esse pensamento: Apolo e Dioniso. Os impulsos estéticos da Natureza, adiantados no fenomenismo da estética goethiana como impulso-forma e impulso-matéria, são as forças que interagem no fenômeno.
Da imagem de uma cultura Grega harmoniosa, projetada e cristalizada desde o classicismo, irrompe um coro de coribantes. A tragédia encarna a enantiodromia heraclitiana que transfigura a matéria dolorosa e sombria e estimula a vida.
Esse princípio conflitante e complementar, que remonta à origem da filosofia trágica, bem como a justificação estética da existência, derivam de Heráclito de Éfeso (544-474). Esse pensador fornece o esquema para a abolição da cisão metafísica operada por Anaximandro e a possibilidade, a partir daí, de uma afirmação não-positiva do devir.
A supressão do abismo cavado entre mundo sensível e mundo inteligível, projetando-se num tal devir, repercute num rastreamento dessa dualidade ontológica que parte das províncias das Naturwissenschaften e Geistwissenschaften, traduzidas por Ciências da Natureza e Ciências do Espírito, origem do nosso binômio natureza/cultura, remetendo-se até a primordial bipartição natureza/sobrenatureza.
Ao alinhar sob o mesmo regime sígnico, segundo a dimensão estética que circunscreve o conhecimento como construção ad infinitum e mediação necessária à conquista da objetividade, abolindo mundo (empirismo) e sujeito (idealismo) transcendentais, o plano sensível-inteligível dessa filosofia ganha corpo, redimensionando tanto a si própria como epistemologia, como redimensionando sua intervenção no mundo.
O autor radicaliza essa posição ao autobiografar-se, dedicando uma obra a desdobrar-se numa instância narrativa, e operar com ela, em que dialoga com sua obra e refere-se a si como personagem conceitual. Para executar esse desdobramento reinsere, inclusive, seus próprios textos, recita-os , e ainda passa a referir-se a si próprio em terceira pessoa.


Perspectivismo: O Nascimento da Tragédia

O autor concebe a partir do próprio desmembramento mítico do corpo de Dioniso , numa dissecação do princípio de individuação, a chave para concepção trágica da existência a partir da criação artística.

“Mas na medida em que um sujeito é um artista, ele já está liberto de sua vontade individual e tornou-se, por assim dizer, um medium através do qual o único Sujeito verdadeiramente existente celebra sua redenção na aparência”.
(1992:47)

Eis a chave da interface dionisíaca entre o homem e o cosmos. O fenômeno do perspectivismo não é apenas referenciado aqui como recurso exclusivo do rito dionisíaco, é mesmo apropriado no corpo da obra, como princípio criativo. São inúmeros exemplos, dos quais se recorta o seguinte, devido ao jogo de vozes que aciona:

“É uma tradição incontestável que a tragédia grega em sua configuração mais antiga tinha por objeto somente a paixão de Dioniso. Mas com a mesma segurança poderia ser afirmado que nunca, até Eurípedes, Dioniso deixou de ser o herói trágico, e que todas as figuras célebres do palco grego, Prometeu, Édipo e assim por diante, são apenas máscaras desse herói primordial, Dioniso. Haver uma divindade por trás de todas essas máscaras é o único fundamento essencial para a ‘idealidade’ típica dessas figuras célebres, tantas vezes notada com espanto. Não sei quem afirmou que todos os indivíduos, como indivíduos são cômicos e por isso não-trágicos: de onde se poderia concluir que os gregos simplesmente não podiam suportar indivíduos sobre o palco trágico. De fato eles parecem ter sentido assim; do mesmo modo que em geral essas distinção e valorização platônica da ‘idéia’ em contraposição ao ‘ídolo’, à cópia, estão profundamente entranhadas na essência helênica. Para servir-nos da terminologia de Platão, poderíamos dizer, das figuras trágicas do palco helênico, mais ou menos isto: o único Dioniso verdadeiramente real aparece em uma pluralidade de figuras, sob a máscara de um herói combatente e como que emaranhado na rede da vontade individual. E assim que o deus, ao aparecer, fala e age, ele se assemelha a um indivíduo que erra, se esforça e sofre: esse, em geral, aparece com essa precisão e nitidez épicas, isso é o efeito de Apolo, esse decifrador de sonhos que evidencia ao coro seu estado dionisíaco por meio dessa aparição alegórica. Em verdade, porém, esse herói é Dioniso sofredor dos Mistérios...” (1979:17)

Desde que centrado na imanência, o próprio idealismo (Platão) pode ser apropriado, acionando assim a própria transcendência como potência do falso, como contraponto que a cria. No mesmo momento em que revela o recurso cênico da tragédia, que tem origem nos Mistérios, o autor serve-se de um enunciado platônico. O duplo desdobramento, de que resultam os personagens e do qual se espantavam os Gregos, parece ser o mesmo empreendido no texto.
Sua proposta de transvaloração via estética opera na interface em que o enunciado decompõe tanto a unidade do sujeito enunciante, como a unidade do referente, pontos pacíficos da consciência objetiva positivista, apoiada sobre a moral que institui o discurso competente . Em contraste com a culpa, elemento chave do sistema criticado, essa proposta libera uma inocência.
Mais que os mitos , é a dimensão da ritualidade que interessa ao autor desde os primórdios místicos até a tragédia propriamente . Os antigos ritos a Dioniso coordenam o refinamento através de experiências extáticas. Esse saber-corpo sustenta uma apropriação da representação que encaminha um jogo de máscaras, de personas, que problematiza a interação enunciativa.


A FILOSOFIA NA IDADE TRÁGICA DOS GREGOS

“Julga-se ver dois viajantes à beira de uma torrente agitada que arrasta pedras consigo: um deles salta com leveza por cima dela, servindo-se das pedras para se lançar em frente, mesmo que estas se afundem bruscamente atrás dele. O outro encontra-se desamparado a cada momento, deve primeiro construir fundamentos que possam sustentar os seu passo pesado e prudente; às vezes não consegue, e então nenhum deus o ajuda a transpor a torrente. O que leva, pois, o pensamento filosófico tão rapidamente ao seu fim? Distingue-se ele do pensamento calculador e mensurante só por percorrer mais rapidamente grandes espaços? Não, porque lhe dá asas um poder estranho e ilógico, a imaginação.” (Nietzsche, 1995:28)

Depois de despertar a filosofia dionisíaca a partir do recurso do desdobramento enunciativo, o autor vai ao encontro de seus precursores. Elabora uma retomada do que chama de filosofia na idade trágica dos Gregos (1873). O interesse de comentar essa obra deve-se à exploração do recurso do desdobramento enunciativo próprio da filosofia trágica.
Comentando Tales, propõe a imaginação como princípio do pensamento intuitivo e apropria-se do ‘tudo é um’. Elabora então uma imagem do filósofo em que já propõe o recurso dramático como estratégia da intuição filosófica, em contraste com a dimensão objetiva do pensamento. O filósofo trágico constitui-se de ambas dimensões.

“O filósofo tenta deixar ressoar em si a sinfonia do mundo e destacá-la em conceitos para fora de si: enquanto é contemplativo como o artista plástico, compassivo como o homem religioso, enquanto espia fins e causalidades como o cientista e se sente dilatando até ao macrocosmos, conserva a circunspecção de friamente se considerar como reflexo do mundo; guarda aquele sangue-frio que é próprio do artista dramático que se transforma em outros corpos, que fala através deles e que, apesar disso, sabe projetar para fora de si essa metamorfose em versos escritos. O que, aqui, o verso significa para o poeta é o que o pensamento dialético significa para o filósofo: agarra-se a ele para fixar o seu encantamento, para o petrificar. E assim como para o poeta dramático a palavra e o verso não passam de um balbuciar em língua estrangeira, para nela dizer o que viveu e o que viu e o que também só pode traduzir directamente através dos gestos e da música, assim também a expressão de toda a intuição filosófica profunda pela dialética e pela reflexão científica é, por um lado, o único meio de comunicar o que foi intuído pelo pensador mas é, ao mesmo tempo, um meio miserável porque, no fundo, não passa de uma transposição metafórica e absolutamente inadequada para outra esfera e para outra linguagem. Foi assim que Tales vislumbrou a unidade do ente; e quando a quis comunicar, falou da água!” (1995:31)

O desdobramento final:  Foi assim..., marca o tráfego entre planos distintos através do discurso direto livre. O autor desvincula seu vislumbre do vislumbre de Tales ao marcar o discurso citado implícito, ou o discurso direto livre. O autor se funde ao fluxo de pensamento de Tales que deixa de ser a referência do texto e, num movimento dionisíaco de transformação de corpos, fala através dele.
Encontra-se ainda nesta passagem, o desdobramento em outros corpos que será conduzido pela retomada do devir.
A partir do primeiro conceito, a pedra angular da unidade do ente, afirma de Anaximandro: “Primeiro pergunta a si mesmo: ‘Se há, em geral, uma unidade eterna, como é que a multiplicidade é possível?’ E recebe a resposta do caráter contraditório desta multiplicidade que a si se devora e se nega. A existência desta multiplicidade torna-se para ele um fenômeno moral; não se justifica, mas expia-se incessantemente pelo declínio.” (1995:36)

Aqui o autor já se apropria do discurso direto para expor o pensamento do personagem. O que nos interessa da apropriação sobre o Indefinido de Anaximandro é a questão moral aqui vislumbrada e que atravessa a obra do autor. O autor pressente o julgamento da vida em nome de valores superiores, situando a primordial oposição physis/metaphysis em âmbito filosófico. Esse indefinível insere um princípio oculto no pensamento. Esse segundo movimento só é possível por ter sido preparado pela unidade do ente.
É na obra de Heráclito que Nietzsche entrevê a apropriação do perspectivismo como recurso filosófico, inspirado pela intuição que integra o pensamento à criação artística. A obra nesse regime nunca perde de vista a si própria para referir-se ao exterior, e sim redimensiona o exterior a partir de seu movimento. A separação dessas dimensões realiza-se com a incisão sobre a representação e a ruptura impressa pela objetividade no pensamento racional. “O dom real de Heráclito é a sua faculdade sublime de representação intuitiva; ao passo que se mostra frio, insensível e hostil para com o outro modo de representação...” (1995:40)

Ao reapropriar-se da técnica místico-intuitiva do perspectivismo, Nietzsche critica a ruptura imposta pela objetividade, característica do positivismo, desde as suas bases.
Descarta a concepção moral em que se apóia a dualidade de Anaximandro ao afirmar o princípio estético fundamental do jogo do mundo, movimento original da filosofia.
“Heráclito não tem razão alguma para se sentir obrigado a provar (como Leibniz) que este mundo é o melhor de todos; basta-lhe que seja o jogo belo e inocente do Eão.” (1995:50)

Esse princípio estético da existência encampado por Nietzsche, constitui-se a partir do cerne da filosofia de Heráclito: a afirmação radical do devir. O campo preparado pelos precedentes coloca Heráclito no lugar certo e na hora certa.

“Em primeiro lugar, negou a dualidade de dois mundos totalmente diferentes, que Anaximandro se vira obrigado a admitir; já não distingue um mundo físico e um mundo metafísico, um domínio de qualidades definidas e um domínio da indeterminação indefinível. Após este primeiro passo, também já não pôde coibir-se de uma maior audácia da negação: negou o ser em geral. Pois o único mundo que ele conservou  um mundo rodeado de leis eternas não escritas, animado do fluxo e do refluxo de um ritmo de bronze  nada mostra de permanente, nada de indestrutível, nenhum baluarte no seu fluxo.” (1995:40)

O pensamento trágico encontra aqui seus princípios. Das duas negações resulta a afirmação do devir, cerne da filosofia do efésio.
Essa construção sobre corpos que se fundem num mesmo agenciamento inspirados pelo ritmo da dança e a dissonância musical que operam a deformação e redefinição de mundos sensíveis; essa operação em que tal mundo possível se interconstitui com a ritualidade num plano de imanência parece ser o propósito programático que segue seu curso de redefinição contínua sobre planos de organização que buscam capturá-la e fixá-la, como este. A constituição de um plano de imanência que deverá suportar a dissolução das categorias pronominais e das relações intersubjetivas que definem o sujeito do conhecimento a partir da consciência e do transcendental. Como não seria possível fazer essa transposição a partir de um olhar absoluto, o autor encontra esse centro proliferador de perspectivas sensíveis: o trágico dionisíaco que põe a nu o corpo imanente do conhecimento: diáfano, fugaz, perecível, efêmero... e com isso libera sua velocidade infinita pra cruzar o transcendental sem instalar-se nele ou a partir dele.

“O devir único e eterno, a inconsistência total de todo o real, que somente age e flui incessantemente, sem alguma vez ser, é, como Heraclito ensina, uma idéia terrível e atordoadora, muitíssimo afim, na sua influência, ao sentimento de quem, num tremor de terra, perde a confiança que tem na terra firme. Foi precisa uma energia surpreendente para transformar este efeito no seu contrário, em sublimidade e no assombro bem-aventurado. Heraclito chegou a este ponto graças a uma observação do verdadeiro curso do devir e da destruição, que ele concebeu sob a forma da polaridade, como a disjunção de uma mesma força em duas actividades qualitativamente diferentes, opostas, e que tendem de novo a unir-se. Incessantemente uma qualidade se cinde em si mesma e se divide nos seus contrários: permanentemente esses contrários tendem de novo um para o outro. (...) Todo o devir nasce do conflito dos contrários.”
(1995:42)

A imanência da unidade à esfera da multiplicidade, e a conseqüente negação da bipartição metafísica do mundo, é o que Nietzsche sintetiza na fórmula que soa pela boca de Heráclito: O um é o múltiplo (Das Eine ist das Viele).


Apolíneo e Dionisíaco

“As fórmulas para tornar-se médico, entre os índios, santo entre os cristãos da Idade Média, anguecoque entre os groenlandeses, paje entre os brasileiros são, nas suas linhas gerais, as mesmas: o jejum exagerado, a contínua abstinência sexual, a retirada para o deserto ou para a montanha, ou ainda no alto de uma coluna, ou então ainda ‘a estadia num velho salgueiro na margem de um lago’ e a ordem de não pensar noutra coisa senão naquilo a que pode levar o êxtase e a desordem do espírito.” (Nietzsche)

A concepção de um princípio filosófico trágico no pensamento Grego pré-socrático, esboçado fundamentalmente a partir do pensamento intuitivo de Heráclito, encaminha Nietzsche a buscar na ritualidade da tragédia ática sua manifestação primordial.
Desse conjunto de técnicas de culto compilado e analisado, o autor extrai dois princípios estéticos. Um desses princípios remete à Apolo, entidade divina que encarna a forma e a proporção, princípio apolíneo. O outro é o princípio dionisíaco, inspirado na deidade que encarna o êxtase e o devir desterritorializante.
O autor recorre assim, a tais princípios místicos para interpretar a dinâmica que caracteriza o espírito trágico expresso nessa arte inspirada pela música e dança místicas. Sua abordagem dos cultos dá-se menos por sua descrição que pela busca de encarnar em letra o espírito trágico.
Propõe-se encaminhar a articulação desses princípios estéticos, de que resulta a obra apreciada, ao vínculo, proposto por Deleuze-Guattari, entre plano de imanência e plano de transcendência sobre os quais deslizam os devires.

“É que o plano de organização ou de desenvolvimento cobre efetivamente aquilo que chamávamos de estratificação: as formas e os sujeitos, os órgãos e as funções são ‘estratos’ ou relações entre estratos. Ao contrário, o plano, como plano de imanência, consistência ou composição, implica uma desestratificação de toda Natureza, inclusive pelos meios os mais artificiais. (...)” (1997:60)

Assimila-se o plano de transcendência ao princípio apolíneo em seu caráter configurador, que caracteriza a determinação ligada à necessidade e previsão do agir social. Ainda que persistamos conectados a ele, circunscritos em sua organização, o plano de consistência sonda com seu fluxo de dispersão infinito. Simular a música ou a dança rituais: dessa consubstanciação resulta a filosofia trágica que se extingue na sua própria emergência. O enfoque concentra-se no plano de consistência.

“O plano de consistência é o corpo sem órgãos. As puras relações de velocidade e lentidão entre partículas, tais como aparecem no plano de consistência, implicam movimentos de desterritorialização, como os puros afectos implicam um empreendimento de dessubjetivação. Mais ainda, o plano de consistência não preexiste aos movimentos de desterritorialização que o desenvolvem, às linhas de fuga que o traçam e o fazem subir à superfície, aos devires que o compõem. (...)” (1997:60)

Como na filosofia trágica é o princípio dionisíaco que dá corpo, materializa a obra que se constitui concomitantemente à sua aniquilação/dissipação, aqui também o que emerge é o plano de imanência. Ambos possuem esse princípio imanente, assim como conduzem a uma decomposição da subjetividade a partir do princípio do perspectivismo/agenciamento. Assim como o êxtase fornece à arte o modelo das séries subjetivas, o desmembramento molecular do devir cujos modelos são a enunciação literária e a música.

“De modo que o plano de organização não pára de trabalhar sobre o plano de consistência, tentando sempre tapar as linhas de fuga, parar ou interromper os movimentos de desterritorialização, lastreá-los, reestratificá-los, reconstituir formas e sujeitos em profundidade. Inversamente, o plano de consistência não pára de se extrair do plano de organização, de levar partículas a fugirem para fora dos estratos, de embaralhar as formas a golpe de velocidade ou lentidão, de quebrar as funções à força de agenciamentos, de microagenciamentos. Mas, ainda aqui, quanta prudência é necessária para que o plano de consistência não se torne um puro plano de abolição, ou de morte.” (1997:60)

Esse plano de imanência ou consistência é oportuno, a princípio, por incorporar a dinâmica de circulação simbólica da corporalidade no canto-dança ritual. A ritualidade instaura um modelo sobre o corpo. Ele estende-se, flui contínuo ao plano de imanência, que não se desdobra numa troca social mediada por objetivações materiais. É o próprio veículo da intensidade e suporte de tais trocas.
Através do plano de imanência, que descreve a dinâmica do trágico dionisíaco, aproxima-se do plano em que se constitui a aprendizagem Guarani do canto-dança. Esse momento do canto-dança ritual equivale a uma entrada por inteiro no universo simbólico, sendo que a abertura à uma sensibilidade intensa, ou intensidade sensível, predispõe o complexo somático para as operações de troca que se dão em dimensões que podem passar ao largo da consciência.
Devido a isso que a preparação do sacerdócio concentra-se sobre os exercícios de silenciamento, ao lado do jejum e da abstinência sexual. Com o silenciamento cultiva-se a consciência corporal sobre o plano de imanência. Essa operação individual torna-se possível devido ao manejo de intensidades que perpassam o corpo na ritualidade coletiva.
Como não relevar aqui a distinção entre tal preparação do corpo nos processos de aprendizagem e o processo de formação ocidental, voltado para o espírito ou o plano de transcendência.


A imanência: Nietzsche/Heráclito

“O movimento infinito é duplo, e não há senão uma dobra de um a outro. É neste sentido que se diz que pensar e ser são uma só e mesma coisa. Ou antes, o movimento não é imagem do pensamento sem ser também matéria do ser.” (Deleuze-Guattari:54)

O que se pretende ao alinhar esse recurso da obra primeira de Nietzsche a estas considerações sobre a ritualidade Guarani é apontar o agenciamento como recurso fundamental das práticas rituais que, apropriado na escrita, opera o redimensionamento do plano verbal.
O recurso (estilístico e filosófico) que possibilita a apropriação da filosofia trágica é a categoria da agência ou o perspectivismo. Esse recurso é princípio misteriosófico do dionisismo e encontra-se elaborado no pensamento de Heráclito, precursor da filosofia trágica. A redescoberta e apropriação desse recurso redimensionam o próprio contexto em que se dá. Até a época de Nietzsche, o pensamento clássico Grego havia sido reconstituído sempre sob a imagem harmônica do espírito racional. Conforme Catunda: “O filósofo grego Heráclito observou o paradoxo do pensamento que pretende ‘imobilizar coisas móveis, no limite de definições fixas’.” (:18)

O impulso dionisíaco reconfigura esta imagem, dando-lhe corpo e movimento através da dissonância, recuperando e redefinindo as referências por meio de um recurso não linear que põe a perder as concepções positivistas.
A abertura a que conduz essa técnica parece ser a tese central de O nascimento da tragédia. O interesse se desloca do conteúdo para jogo de vozes e intensidades que opera no texto. É através dela que o autor realiza sua retirada do plano de representação dual platônico e pode criticá-lo, a partir já de uma outra esfera.
Essa proliferação de tons e de vozes que irrompe em O nascimento da tragédia, já adianta a disposição aforística de sua obra posterior. Deleuze comenta essa multiplicidade de planos.
“Parece-nos que, em Nietzsche, o problema não é tanto o de uma escrita fragmentária. É mais o das velocidades ou lentidões: não se trata de escrever lenta ou rapidamente, mas que a escrita, e todo o resto, sejam produção de velocidades e lentidões entre partículas. Nenhuma forma resistirá a isso, nenhum caráter ou sujeito sobreviverá a isso. Zaratustra só tem velocidades e lentidões, e o eterno retorno, a vida do eterno retorno, é primeira grande liberação concreta de um tempo não pulsado. Ecce homo só tem individuações por hecceidades” (1997:58)

Nietzsche reelabora em seu contexto a imagem do mundo Grego. À harmonia clássica o autor contrapõe o coro dissonante que deve desmontar a imagem progressiva e linear da história, bem como a doutrina do objetivismo absoluto que assola o pensamento da época. Por fim, nessa série de demolições, o autor opera a pulverização do sujeito do conhecimento, mas não pelo recurso ao inconsciente, e sim pela polifonia, o jogo de vozes em que o discurso vai se desmembrando. Nietzsche constata que o espírito trágico dos filósofos pré-idealistas, especialmente a intuição heraclitiana, estão fundados em bases sensíveis, ancorados na corporeidade via esquemas (corporais) recompostos a partir dos fragmentos das práticas rituais.
Observa a articulação desses princípios fundamentalmente na obra de Heráclito. A partir dos fragmentos do efésio, reconfigura seu contexto, denominando-o de Idade Trágica da Filosofia Grega.